Projetar produtos é uma atividade que compreende o planejamento e a concepção de artefatos. Sobre esta definição, Denis (1998, p. 19) comenta que “do ponto de vista antropológico, o design é uma entre diversas atividades projetuais, tais como as artes, o artesanato, a arquitetura, a engenharia e outras que visam a objetivação no seu sentido estrito, ou seja, dar existência concreta e autônoma a idéias subjetivas”. Este autor defende o uso da palavra artefato como resultado do processo de design, pois este termo “... se refere especificamente aos objetos produzidos pelo trabalho humano, em contraposição aos objetos naturais ou acidentais”.
O conjunto de artefatos produzidos e utilizados por um determinado grupo social pode ser caracterizado como sua “cultura material” (Denis, 1998). O papel dos artefatos como elementos dessa cultura material vai além do cumprimento de requisitos funcionais e técnicos, pois envolve componentes simbólicos, psicológicos e afetivos que, por sua vez, não possuem significados fixos ou únicos:
O significado do artefato para o usuário não se reduz ao seu funcionamento e seria mais adequado falar de ‘funções’ do objeto do que de ‘função’, principalmente no que diz respeito à sua inserção em um sistema de produção, circulação e consumo de mercadorias. Se a única função do relógio é a de mostrar a hora, então como distinguir, em termos de funcionalidade, o despertador do relógio de rua, o analógico do digital, o Rolex do Swatch?
Evidentemente, entram em consideração uma série de outras ‘funções’, dentre as quais podemos destacar o contexto de uso, a comodidade, o conforto, o gosto, o prazer, a inserção social e a distinção (Denis, 1998, p. 31).
De acordo com Denis (1998, p. 33, grifos do autor), os artefatos possuem diversos níveis de significados, sendo alguns universais e inerentes: como exemplo ele cita as garrafas, que são feitas para guardar líquidos, e alguns pessoais e volúveis: como o uso de uma determinada garrafa para guardar uma bebida preferida. De qualquer modo, todos os significados que o artefato adquire resultam da intencionalidade humana.
O autor defende que existem duas maneiras básicas de inserir significados aos artefatos: “a atribuição e a apropriação os quais correspondem em linhas gerais aos processos paralelos de produção/distribuição e consumo/uso”. Os significados atribuídos durante a produção e a distribuição, geralmente correspondem à categoria dos universais e inerentes, enquanto que os significados pessoais e volúveis são resultado da apropriação do artefato nos momentos do consumo e do uso.
O designer age na instância da atribuição de significados aos artefatos, uma vez que seu trabalho está ligado às fases de concepção, produção e distribuição. Ao projetar, o designer pode atribuir significados aos artefatos que vão muito além da funcionalidade. Bonfim (1995), ao falar sobre o artefato como elemento capaz de portar informações sobre o desenvolvimento de uma sociedade, afirma que o mesmo “independente das funções imediatas a que serve, revela algo sobre o próprio objeto, sobre seus usuários e sobre o momento social, político e econômico em que se dá o relacionamento entre eles.” O artefato carrega, também, concepções e valores resultantes da leitura do designer sobre a cultura e a sociedade a que pertence.
A seguir estão elencados alguns tipos de mensagens transmitidas pelos artefatos, segundo Bonfim (1995, p. 88-89):
· sua própria constituição (material, cor, textura, processo de fabricação, tecnologia);
· funções práticas (para que é usado);
· modos de uso (que se estabelecem através do aprendizado e da memorização de estereótipos);
· valores estéticos (percebidos sensorialmente e interpretados segundo juízo de gosto ou da norma vigente);
· significados enquanto signos de uma gramática visual culturalmente estabelecida (uma figura arredondada parece menos agressiva do que outra com ângulos agudos);
· significados ideológicos (ideais políticos e religiosos).
Para explicar este último item, Bonfim (1995, p. 89) faz uma comparação entre dois tipos de bonecas: a Barbie e uma boneca de pano, destas vendidas em feiras de artesanato.
A Barbie é magra, loura e está acompanhada de diversos acessórios como jóias, vestidos, cosméticos, namorado, academia de ginástica, entre outros, que formam a representação de um estilo de vida ideal: “Barbie é um código de informações bem definido e fechado que desconhece o tempo e as fronteiras ou diferenças culturais. É um modo universal, que as crianças incorporam e tentam reproduzir”.
As bonecas de pano, mesmo que produzidas em série, guardam sempre diferenças entre si e não tem nome ou comportamento definido, sua identidade é construída pela imaginação da criança: “a boneca de pano é um conjunto vazio, que só ganha vida através da relação entre sujeito e objeto, que é única para cada indivíduo, de acordo com sua história, sua cultura, sua consciência e inconsciência”.
A atividade de planejar e conceber artefatos envolve a configuração de comportamentos e a atribuição de significados aos objetos de uso cotidiano, portanto o artefato não pode ser encarado como um objeto neutro e isolado de seu contexto de uso. Esta forma de entender o design de produtos modifica o quadro de referência com relação à responsabilidade do profissional frente à sociedade e à sua cultura material.
Moraes (1997, p. 106), referindo-se à sua preocupação com o desenvolvimento de produtos mais adequados ao contexto de uso, sugere que o ser humano deve ser adotado como principal fator de orientação projetual. Para o autor, projetos que utilizam como referência somente a questão estética e as possibilidades produtivas podem apresentar deficiências na interação entre produto e usuário: “certas calculadoras, por exemplo, são festejadamente comparadas a cartões de crédito, mas são frágeis e apresentam uma tipologia de uso inadequada. [...] Sua escala de referência projetual é o bolso da camisa ou a carteira de dinheiro, porém esqueceu-se de que se faz uso deste produto com os dedos das mãos”.
Outra orientação projetual defendida pelo autor é a mudança de enfoque do produto para o resultado, ou seja, o designer deve, em princípio, deixar de pensar no produto em si, voltando a atenção ao contexto e a situação de uso que envolvem o projeto. “Por exemplo, não se deve pensar em uma cadeira, mas no ato de assentar; não se faz necessário pensar no copo, mas no ato de beber. [...] Um projeto, uma vez direcionado por tais enfoques, tem a possibilidade de apresentar soluções mais inovadoras, diferenciadas e, às vezes, inusitadas” (Moraes, 1997, p. 115).
O direcionamento do projeto para a situação de uso do produto é encarado como uma alternativa para a atividade de projetar, potencializando o surgimento de propostas que transcendam os modelos vigentes e incentivando a pluralidade de soluções. Além disso, ao considerar o contexto que envolve o tema proposto, o designer tem a possibilidade de abordar em seu projeto a dimensão sócio-cultural, através do estudo dos aspectos comportamentais que envolvem as relações entre o ser humano e artefato.
Os artefatos produzidos pelo ser humano representam muito mais do que sua própria materialidade, pois sua existência está relacionada às situações vividas pelas pessoas. Através das relações sociais em que estão envolvidos, os artefatos adquirem significados que podem estar relacionados tanto aos aspectos funcionais do produto, quanto aos valores simbólicos a ele atribuídos. Ao projetar um produto, o designer se confronta com questões muito mais amplas do que o binômio criação e produção. Reduzir o discurso do design ao antagonismo entre arte e tecnologia acarreta a ignorância da riqueza de significados e valores que surgem do inter-relacionamento destes dois campos, e que são traduzidos nos produtos que compõem a cultura material da humanidade.